O lazer deve ser encarado como um tempo livre necessário ao desenvolvimento não só do individuo, mas da sociedade em geral. É através de atividades lúdicas, que se desenvolvem componentes motores, afetivos, cognitivos, morais, lingüísticos e sociais da personalidade humana (Manning, 1997), além de promover a integração social dos moradores de uma comunidade, estimulando o convívio entre eles e preenchendo o tempo dessas pessoas, que, na maioria das vezes, vivem em espaços domésticos reduzidos, não dispondo de recursos apropriados para a realização desse tipo de atividade.
Dentre as atividades que podem ser desenvolvidas pelas Bases de apoio estão aquelas relacionadas à cultura, esporte e lazer, que são direitos fundamentais de cidadania para toda e qualquer criança, adolescentes e jovens, de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente. Esse direito, no entanto, não faz parte da realidade da maioria da população moradora de bairros periféricos. Com os dados abaixo, podermos constatar que um bom número de atividades de lazer não participa da vida de uma parcela significativa dos jovens e adolescentes desta pesquisa.
Dos participantes, 52,61% praticam esportes. Os esportes praticados pelos estudantes são:
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Gráfico 2: Esportes mais praticados

Dentre os que praticam esportes, 42,45% fazem parte de algum clube ou grupo organizado, sendo que 41,88% destes estão localizados na própria comunidade. De forma geral, independentemente de fazerem parte ou não de um grupo organizado, 41,88% dos que praticam esportes o fazem na própria comunidade. Estas atividades, em sua maioria, são realizadas na escola, coordenadas pelos seus funcionários ou por pessoas do bairro que desenvolvem projetos por iniciativa própria e/ou com o apoio do colégio, como é o caso também da capoeira e da dança. Esses dados mostram que a prática de esportes apresenta-se como uma atividade importante no contexto local, podendo ser pensada como uma base de apoio informal. A prática de esportes é mais freqüente entre os homens do que entre as mulheres. Tal dado está provavelmente associado ao fato de que as meninas realizam em maior quantidade atividades domésticas como cozinhar, cuidar de irmãos menores, limpeza da casa, etc, as quais consomem boa parte de seu tempo.
Quando estão fora da escola os adolescentes costumam, com maior freqüência, conversar com os amigos (67,5%) e/ou ouvir música (62,5%), praticar esportes (42,67%), dentre outras coisas. Para se divertir, a maioria assiste televisão (72,5%) e/ou conversa com os amigos (68,6%), passear (52,30%), ficar em casa (44,50%), jogar bola (42,10%). Além disso, 68,5% dos jovens já participaram de atividades coletivas, entre as quais as mais citadas foram os passeios organizados pela escola (61,80%), shows (57,14%), gincanas (47%), grupos de dança (30,75%). A freqüência desses adolescentes e jovens ao teatro e ao cinema é praticamente inexistente.
Dessa forma podemos constatar que o lazer, a diversão e as atividades coletivas desses adolescentes são realizados praticamente na própria comunidade – até mesmo em casa – e com os amigos. Por um lado isso reforça o papel do grupo de amigos enquanto base de apoio informal, mas por outro demonstra uma possível restrição no que diz respeito à oferta de opções de lazer a que essas pessoas têm tido acesso. Essa restrição pode ser uma conseqüência do pouco conhecimento que esses jovens têm acerca de serviços, grupos ou pessoas na comunidade que oferecem atividades culturais ou esportivas, pois constatamos que 49,6% declararam não conhecer nada a esse respeito. Além disso, conhecendo Bom Pastor, sabemos que a escassez de opções de diversão é uma realidade, como em qualquer bairro periférico do país. Não há quadras estruturadas de esportes, não há cinema, não há centros culturais e mesmo os brinquedos públicos e as praças são precárias, estão em péssimo estado de conservação, geralmente danificados pelos próprios moradores.
Por outro lado, não é possível desconsiderar que a maioria não dispõe de recursos financeiros para se deslocar da zona oeste para as regiões da cidade que oferecem mais possibilidades de lazer, muitas das quais implicam em gastos altos com transporte e alimentação. Essa situação também foi identificada na pesquisa em Bangu-RJ, onde existe uma falta de atividades culturais, com poucos espaços e programas estruturados para a comunidade. Porém, um aspecto importante que precisa ser destacado refere-se ao fato de que tais espaços não podem ser compreendidos apenas como aparatos físicos, mas sim como dispositivos simbólicos de sociabilidade, convívio e de trocas afetivas. A redução ou inexistência desses espaços nas comunidades pobres está relacionada à lógica do capitalismo e das políticas econômicas e sociais, a qual fabrica um individualismo exacerbado, a atomização das relações e a desqualificação da solidariedade.
Portanto, outro aspecto a ser levado em consideração é que as atividades de lazer realizadas pelos adolescentes e jovens estão praticamente circunscritas ao espaço doméstico, revelando a falta de iniciativas públicas no sentido de construir espaços sócio-recreativos em comunidades de baixa renda, o que pode ser compreendido como uma estratégia de controle e exclusão de tais moradores, limitando sua circulação na cidade. Nesse sentido, concordamos com Soares (2002) que
(...) a própria direção dos programasse projetos na direção de atividades em espaços fechados, buscando afastar os jovens dos espaços de convívio da rua, oferecendo-lhes uma opção "segura" não toca no foco: é nas ruas que relações que consideramos "não favoráveis" ao desenvolvimento destes jovens estão se gestando (p.112).

Ou seja, a circulação restrita da maioria dos adolescentes e jovens dessa comunidade no circuito casa-trabalho-escola, aponta para o mínimo de oportunidades que são oferecidas a estes jovens, para o esvaziamento dos espaços públicos, para os discursos que ressaltam valores como intimismo, privatismo, individualismo, onde a casa é o espaço privilegiado das trocas afetivas e a família responsável pela reclusão de tais sujeitos, evitando com isso os "riscos" da rua tais como o tráfico, violência e prostituição, dentre outros, e conseqüentemente, da concretização do estigma social de que são potencialmente vulneráveis, perigosos, bandidos ou delinqüentes.
Esse aspecto é importante, pois traz à tona uma questão estudada por Zamora (1999), acerca da sociabilidade e isolamento em localidades como a que está sendo investigada. A autora discutindo a expansão do individualismo às camadas pobres, embora de forma e intensidade diferentes das classes abastadas, ressalta a disseminação de "práticas privatizantes", ou seja, de atividades ligadas ao consumo e à busca de privacidade como um valor em si (p.24). Preocupa-nos as implicações de tal condição nas redes de solidariedade e suporte social, nas bases de apoio existentes na maioria das pequenas comunidades.
Observa-se atualmente a expansão e naturalização do discurso que valoriza o fechamento paulatino dos espaços de convivência. Além disso, essa perda ou diminuição de laços sociais vem sendo produzida e vendida como modo de subjetivação por excelência na contemporaneidade. "Essas subjetividades solitárias se aglomeram em lugares resguardados do resto de uma cidade cada vez mais vista como perigosa. Com isso também, atualmente se vende segurança, conforto e privacidade" (p.30). Concordamos, pois, com Vilhena (2004) que o enfraquecimento dos laços de solidariedade e sociabilidade produz ressonâncias importantes em termos da produção de uma subjetividade voltada para o intimismo, consumismo e desinteresse político. E isso já pode ser identificado na realidade que pesquisamos.
De acordo com o relatório do Fórum Engenho de Combate à Pobreza (2002), uma característica marcante do bairro de Bom Pastor é a presença de um "individualismo coletivo" (p.9) relacionado com a forma fragmentária e dispersa pela qual tal localidade foi se constituindo. O bairro é formado de micro-localidades acirrando uma disputa por prestígio, visibilidade e espaço, fragmentando ainda o sentido de pertença. Além dessa dispersão geográfica do bairro, há uma diversidade de "perfis" juvenis afetando diretamente as relações da comunidade, desconstruindo a idéia de uma possível identidade grupal.
Ou seja, foi observado que há fortes sentimentos de rejeição, desprezo e discriminação entre esses jovens que estão inseridos em diferentes territórios dentro do mesmo bairro, que os leva a um isolamento e ao convívio em "grupinhos" que não proporcionam o sentimento de pertencimento. Vivendo, pois, num contexto onde há uma clara sobreposição de exclusões (de classe, de gênero, de etnia e de geração), e, portanto, de violência (física, social, psicológica, simbólica), entendemos que tal condição tem impactos importantes na produção de subjetividade e conseqüentemente nas relações de sociabilidade e na circulação desses sujeitos pelos espaços da cidade.
Como não concordar com Pelbart (1997), "que a miséria moral, o esvaziamento subjetivo, o abandono, a solidão são indissociáveis produção do desemprego, de guetos, da terceiro-mundialização deliberada, da fabricação de um contingente de imprestáveis, numa espécie de genocídio planificado em nível planetário?" (p.35).
Dessa forma, consideramos que o envolvimento de adolescentes e jovens em atividades esportivas e culturais ainda é muito pequeno, ainda mais se observarmos também sua participação em grupos organizados. Dados do relatório do Fórum (op.cit.) confirmam que na zona oeste como um todo, o bairro de Bom Pastor é o que registra menor índice de participação dos jovens em atividades esportivas e artístico-culturais extracurriculares, bem como em grupos comunitários. Tal situação, como discutida acima, pode ser pensada a partir da constatação de que não há espaços para o exercício destas atividades, ou, quando há, o acesso é restrito e desigualmente distribuído. Entretanto, existem outros vetores que devem ser levados em conta e que dizem respeito à dimensão simbólica do território na construção subjetiva de seus moradores que reflete não só o conjunto das relações sociais, mas produz formas de sociabilidade muito particulares.
Concordamos com Guattari (1992) que
O alcance dos espaços construídos vai então bem além de suas estruturas visíveis e funcionais. São essencialmente máquinas, máquinas de sentido, de sensação, máquinas abstratas, máquinas portadoras de universos incorporais que não são, todavia, universais, mas que podem trabalhar tanto no sentido de um esmagamento uniformizador quanto no de uma re-singularização liberadora da subjetividade individual e coletiva (p.158).
Assim, mais do que um mecanismo de defesa, o individualismo presente entre adolescentes e jovens de Bom Pastor, é um dispositivo eficaz de manutenção das engrenagens que os fazem viver nos "subúrbios da cidadania" (Vilhena, 2004, p.95).